quinta-feira, 20 de agosto de 2009

A vida é um eterno acostumar

Quem vos narra essa via nada sacra é a essência de um homem, que nada perdi exceto aquele a quem dava vida. Não perca seu tempo ardilando sobre como uma essência narra uma história, apenas preste a devida atenção aos fatos que vos compartilho. Esta não é uma história usual, talvez até lhe cause estranhamento: começo contando-lhe o final, afinal, este já era derradeiro. O mais importante é o começo, mas não se afobe, leitor, este tem seu lugar nessas linhas que se seguem.

Tudo havia terminado quando ao homem que dava vida foi lançado um olhar vindo do espelho de seu quarto. Ele fitou em retribuição cordial o igual homem que o fitava e exasperou-se em estranhamento ao sentir-se completamente alheio àquele. Levantaram as mãos juntos, o homem e a imagem, um a esquerda, o outro a direita; em movimento sincronizado, ambos tocaram a superfície espelhada e a despeito de tão parecidos, logo se acostumaram a não serem a mesma pessoa.

Antes disso o homem havia tido filhos, que para ele já haviam nascido crescidos. Acostumara-se a acordar à noite, a trocar fralda, a pegar bico caído ao chão; Tarde notou que seus quartos estavam vazios, quando se acostumou que chamassem-no de pai.

Antes que tivesse filhos, o homem se casara; antes que percebesse havia acostumado a escutar ''eu te amo'' e responder ''eu também''. Tão logo a isso se acostumara a amar também. Não demorou para que em alguns vãos momentos se esquecesse que casado estava e acostumara também a deixar sua aliança no criado mudo.

Antes que pudesse se casar e ter filhos o homem tinha de se tornar adulto e assim o fez como de costume. Acostumou-se a idéia de que suas idéias e seu ímpeto jovem não mudariam o mundo e acabou se acostumando com a idéia de crescer. Não tardou também para que tudo aquilo que acreditava desfalecesse em sua alma acabando por acostumar a fazer tudo aquilo que julgava errado no juventude.

E foi antes do espelho, dos filhos, do casamento e antes mesmo de ficar adulto que estivemos, eu e o homem, o mais próximos um do outro. Eis que chego onde prometi: o primeiro passo dessa via nada sacra que me levou ao definitivo afastamento do homem a quem dava vida, a vida! Ainda era criança e assistia televisão. Eramos puros e inocentes, por que não? Pareceu-lhe atrativa, talvez indolor a idéia que lhe fora apresentada: ''Acostume-se a acostumar, criança, terás a vida menos ralada''.

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